Quando ficamos como assim...

Quando ficamos assim, a ouvirmo-nos e
a falarmo-nos, somos capazes de descobrir muito
mais do que todos eles, obedientes e assustados.
Como aqui, assim, estas palavras a levarem esta
voz fazem-nos saber que estamos juntos, mesmo
quando não há uma sala com estas paredes e só
conseguimos duvidar e duvidar desta verdade.
Estamos juntos, mesmo quando nos separamos
pelas ruas e, dentro de nós, somos um exército
de segredos, mesmo quando nos escondemos do
mundo que desejámos e que desejamos indescon-
troladamente, desincomparavelmente, como um
silêncio que mente e mente e não mente.
Estamos juntos no silêncio, apesar desta voz
carregada por estas palavras, apesar das formas todas
dos nossos corpos e dos desenhos que somos capazes
de fazer com o olhar. As nossas mãos, procuram-se
à noite, dentro das luzes apagadas. As nossas mãos,
nossas, encontram-se agora e são invisíveis. Sabemos
que os nossos dedos tocaram outros dedos, tocaram
nomes e cordas de guitarra. Sabemos quem somos.
Somos muitos e sabemo-nos reconhecer. Assim,
como aqui, esperamos a madrugada, sabendo que
fomos nós, juntos, que a construímos. Esperamos
muito mais que a madrugada. Temos a
força de sempre, aprendemos a renúncia de
nunca mais. A disciplina está enterrada naquilo
que não é medo, é força, e que nos protege, que
nos protegemos a nós próprios. Esta voz, se eles
conseguirem entender esta voz, mudaremos de
língua. Esta voz é esta sala. Esta voz são os caminhos
que fizemos à margem de cidades e de argumentos
razoáveis. As palavras são pedras. As certezas
perseguiram-nos e abrandámos para que nos
alcançassem. Agora, controlamos pontes e
quotidianos. Agora, esta voz dirige-se ao teu rosto.
Nada nos é impossível. Explicamo-nos uns aos outros e,
sem que ninguém nos perturbe, encontramo-nos
sempre como agora, aqui, assim, como agora, aqui, assim.

José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis

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