O difícil é continuar...

"Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha da página branca, da luz e do barulho das portas a abrir. 

Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito 
cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter. (...)

Criadores não nos faltam. Faltam-nos continuadores. Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Faltam-nos guardiões.

É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas - sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades - é o que distingue os seres humanos. O nascimento e a morte não têm valor - são os fados da animalidade. Procriar é bestial. O que é lindo é educar.
(...)

Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer. Salva-las desse destino é a coisas mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que 'salvaguardar'? É mais fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é ficar. Isto ensinou-me o amor da minha vida, rapariga de esquerda, a mim, rapaz conservador. É por esta e por outras que eu lhe dedico este livro, que escrevi à sombra dela.

Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de arte criam-se como galinhas. O difícil é continuar. (...)" 

(M. E. Cardoso)

Poema do silêncio


























Sim, foi por mim que gritei,
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que eu não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
Que ergui mais alto o meu grito,
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de vícios e grandezas,
Foi a razão das épi-trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Alevantei com ironia, sonho, e fumo...

O que eu buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febre de Mais, ânsias de Altura e Abismo
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

E só por me ter vedado
Sair deste meu ser pequeno e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano,
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés abro o meu seio:
Procurei fugir de mim,
Mas eu bem sei que sou o meu único fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir,
Sofro por ter prazer em me acusar e em me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu - sou eu chegado à perfeição...)
Senhor! dá-me o poder de estar calado,
Imóvel, manietado, iluminado!

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que eu levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Também sei bem que embora trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Que a própria dor
De compreender como é supremamente egoísta
A minha máxima conquista!

Senhor! que nunca mais meus versos sôfregos e impuros
Me rasguem, e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida:
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome!

     José Régio, Presença n.º4