Solidão da civilização

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"Como se a alegria se apagasse na terra. Às vezes, por instantes, ainda bruxuleia, aqui e além. No fundo da alma humana, vive a recordação de um mundo feliz, solar, brincalhão, no qual o dever é, simultaneamente, divertimento, e o esforço é agradável e sensato. Talvez os gregos, sim, talvez eles tenham sido felizes... Matavam-se uns aos outros, e aos estrangeiros, entravam em guerras demoradas e sanguinolentas, e, contudo, possuíam uma espécie de jovial e arrasador sentido da comunidade, porque eram cultos, no sentido mais profundo, mais inculto do termo, incluindo os oleiros... Mas nós não vivemos numa verdadeira cultura, mas numa civilização de massas, mecânica e enigmática. Todos têm a sua parte e ninguém a verdadeira alegria. Todos podem tomar um banho quente, se quiserem, admirar uma pintura, ouvir música, falar entre continentes, as leis dos novos tempos tutelam os direitos e os interesses de probres e ricos... Mas vê que rostos! Onde quer que vás no mundo fora, em pequenas ou grandes comunidades, quanta gente de olhar transtornado, quantos homens nervosos e desconfiados, quanta suspeita e hostilidade na sua expressão! E toda esta tensão deriva da solidão. Podemos explicar a solidão, e qualquer explicação é válida, mas nenhuma sabe indicar, efectivamente a sua causa...Conheço mães com meia dúzia de filhos, em cujo rosto se surpreende a mesma expressão de solidão e desconfiança, e burgueses solteiros que nem a tirar as luvas conseguem esconder um ar artificioso, como se as suas vidas fossem uma sequência de gestos forçados. E quanto mais os políticos e profetas se preocupam em construir comunidades cada vez mais artificiais no seio da humanidade, quanto mais educarem as crianças nesse sentido forçado de comunidade, maior será a solidão das almas. Não acreditas? Eu conheço bem isso. E não me canso de falar no assunto.
Se a minha profissão fosse essa, falar às pessoas... sabes, se fosse padre, ou artista, escritor... implorar-lhes-ia que se convertessem à alegria. Incitá-los-ia a esquecer a solidão, a fazê-la desaparecer. Talvez não seja só uma utopia. Não é uma questão social. É outro tipo de educação, de um despertar de consciências. Que olhar vítreo, o do homem de hoje, como se vagasse num estado de hipnose. Vítreo e desconfiado... Só que não é a minha profissão."

Sándor Márai (A mulher certa)

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