Revisitando "O Papalagui" - A nossa sociedade!

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.Descrição da nossa sociedade por um chefe de tribo de tiavéa nos mares do sul

"O Papalagui mora, como mexilhão no mar, dentro duma concha dura. Vive em pedras, como a escolopendra entre as fendas da lava. Tem pedras a toda a volta, de lado e por cima. [...] Muitas vezes mal sabem o nome das [pessoas] que lhes estão ao lado e quando se encontram, ao entrar para o abrigo, cumprimentam-se de má vontade ou zunem, quais insectos hostis, como se estivessem zangados de se verem constrangidas a viveram perto uma da outra. [...] É pois nestes baús que o Papalagui passa a vida. Encontra-se, consoante a hora, ora num, ora noutro baú. É aí que crescem os seus filhos, entre pedras. [...] Quanto a nós, filhos livres do sol e da luz, desejamos continuar fiéis ao Grande Espírito e não sobrecarregar com pedras o coração."

"Muitos há que pelo dinheiro sacrificam o riso, a honra, a consciência, a felicidade e até mesmo mulher e filhos. Quase todos eles sacrificam a saúde ao metal redondo e ao papel forte, isto é, ao dinheiro. [...] O dinheiro é de facto o Deus do Papalagui, se a gente considerar Deus aquilo que mais se adora. [...] Por tudo tens que pagar. Por outro lado há irmãos teus que te estendem a mão e te desprezam ou se enfurecem se nada deixares. Nem o teu mais humilde sorriso, nem o teu mais cordial olhar chegam para lhes comover o coração. [...] Descobri uma única coisa pela qual se não pede ainda dinheiro na Europa, coisa que cada um pode fazer as vezes que quiser: respirar o ar. Julgo que terá ficado esquecido, mas não me admirava nada que, se as minhas palavras fossem ouvidas na Europa, não exigissem logo, por via disso, algum metal redondo e algum papel forte. Porque os Europeus estão sempre à cata de novos motivos para pedir dinheiro. [...] A importância de um homem não é determinada nem pela sua bravura, nem pela sua coragem, nem pelo fulgor do seu espírito, mas sim pela quantidade de dinheiro que possui ou que é capaz de ganhar por dia. [...] A gente logo vê que o dinheiro o pôs doente e lhe ocupa agora todos os pensamentos. [...] Há pois, na Europa, uma metade que trabalha muito e se suja, e outra metade que trabalha muito pouco ou nada. A primeira não tem tempo de sentar-se ao sol, ao passo que a outra o tem de sobra. Diz o Papalagui que os homens não podem ter todos o mesmo dinheiro, nem sentar-se todos juntos ao sol. É graças a esta doutrina fomentada pelo dinheiro que ele se permite ser cruel. Tem o coração duro e o sangue frio; mostra-se até velhaco, falso, raramente honesto e sempre perigosos quando corre atrás do dinheiro. Segundo o modo de pensar do Papalagui, somos uns pobres mendigos. E no entanto! quando vejo os vossos olhos e os comparo com os dos ricos aliis, os deles parecem-me embaciados, mortiços e cansados, ao passo que os vossos irradiam, como a grande luz, alegria, força, vida e saúde. [...] Prezemos os nossos hábitos, que não permitem que um possua imenso e o outro nada, ou que um possua muito mais que o outro! E assim não nos tornaremos, em nosso coração, iguais ao Papalagui, que é capaz de se sentir feliz e contente mesmo quando, ao lado, o seu irmão está triste e infeliz."

"Mas acima de tudo gosta de uma coisa que não se pode agarrar e que no entanto existe: o tempo. Leva-o muito a sério e conta toda a espécie de tolices acerca dele. Embora não possa haver mais tempo do que medeia do nascer ao pôr-do-sol, isso para o Papalagui nunca é o bastante. [...] Como nunca fui capaz de entender isto, julgo que se trata de uma doença grave. «O tempo escapa-se-me por entre os dedos!». «O tempo corre mais veloz do que um cavalo!», «Dá-me um pouco mais de tempo» - tais são os queixumes do homem branco. [...] Pretendem alguns Papalaguis que nunca têm tempo. Correm desvairados de um lado para o outro como se estivessem possuídos pelo aitu e causam terror e desgraça onde quer que cheguem, só porque perderam o seu tempo. Esse estado de frenesim e demência é uma coisa terrível, uma doença que nenhum homem de medicina pode curar, doença que atinge muitos homens e que os leva à desgraça. [...] Reparei, muitas vezes, que eles no meu lugar, se sentiam envergonhados quando, ao perguntarem-me a idade que tinha, eu não era capaz de responder a tal pergunta, que só me dava vontade de rir! «Mas não podes deixar de saber a tua idade!» Eu calava-me, pensando para comigo: mais vale não saber. [...] É por isso que eles passam a vida a correr à velocidade de uma pedra lançada ao ar. A maior parte olha para o chão, quando caminha, e balança muito os braços para ir mais depressa. Quando os detêm, gritam indignados: «Que ideia a tua, de me vires perturbar! Não tenho tempo! E tu, trata de empregar bem o teu!». Tudo se passa como se o que anda depressa tivesse mais valor e bravura do que o que vai devagar. [...] A meu ver, é precisamente por o Papalagui tentar reter o tempo com as mãos, que ele lhe escapa por entre os dedos, como uma serpente por mão molhada. O Papalagui nunca deixa que ele venha ao seu encontro. Corre sempre atrás dele de braços estendidos. [...] O Papalagui não se apercebeu ainda do que o tempo é, não o compreendeu. É por isso que o maltrata, com os seus modos rudes. [...] Devemos curar o Papalagui da sua loucura e desvario, para que ele volte a ter noção do verdadeiro tempo que tem perdido."

"O Papalagui tem uma maneira de pensar particularmente confusa. Está sempre a ver como é que isto ou aquilo lhe poderá ser útil ou dar-lhe certos direitos. Não se preocupa em pensar nos homens em geral, mas apenas num, o qual acaba por ser sempre ele próprio. [...] O Papalagui é obrigado a ter estas leis e estes guardas para os seus inúmeros «meus», a fim de que aqueles que têm poucos ou nenhuns «meus» se não apoderarem deles. De facto, quando uns se apropriam de muitos, os outros ficam sem nenhuns. Porque nem toda a gente conhece as manhas e os sinais secretos precisos para se apropriar de muitos «meus». Para o fazer, há que ser dotado de um certo carácter, o qual nem sempre corresponde à ideia de honra que nós temos. [...] O Papalagui, se reflectisse bem, saberia que aquilo que não estamos aptos a guardar nos não pertence, e que, no fundo, nada há que possamos conservar. Perceberia então que se Deus nos deu o seu vasto reino, foi para que todos nele tivéssemos lugar e aí vivêssemos felizes. E se esse reino era suficientemente grande para poder proporcionar a todos um pequeno lugar ao sol e uma pequena alegria. [...] E no entanto, quantos homens não andam em busca do pequeno lugar que Deus lhe reservou! [...] Mas o Papalagui ignora que Deus nos deu as palmeiras, as bananas, o delicioso taro, as aves da floresta e os peixes do mar para nós todos gozarmos deles e sermos felizes; todos, e não apenas alguns, enquanto os demais se vêem forçados a viver na indigência e na miséria. Se Deus põe assim tantos bens nas mãos do homem, é para que este os partilhe com o seu irmão, quando não, o fruto apodrece-lhe nas mãos. Porque Deus estende as suas inúmeras mãos a todos os homens; não é desejo seu que um tenha muito mais do que o outro, ou que alguém diga: «Eu tenho um lugar ao sol, mas o teu lugar, esse, é à sombra!» Todos temos um lugar ao sol."

"Todos os Papalaguis têm uma profissão. É difícil explicar-vos o que isso é. É qualquer coisa que uma pessoa devia ter vontade de fazer, mas que raramente tem. Ter uma profissão significa fazer sempre a mesma coisa, fazer uma coisa tantas vezes que se acaba por fazê-la em esforço e de olhos fechados! [...] Há, entre os Papalaguis, tantas profissões quantas pedras há na lagoa. O Palalagui faz de cada acto uma profissão. [...] Assim se explica o facto de a maior parte dos Papalaguis apenas saber fazer o que constitui a sua profissão. [...] Este saber-fazer-apenas-uma-coisa é uma grande fraqueza e apresenta grandes perigos; pois qualquer pessoa pode, um dia, ver-se obrigada a atravessar a lagoa de canoa. [...] A profissão é, também ela, um aitu que dá cabo da vida e promete belas coisas ao homem, ao mesmo tempo que lhe suga o sangue. [...] «Se apenas temos o direito de fazer uma só coisa e não podemos participar em todos os trabalhos para os quais é necessária a força do homem, não sentiremos nem metade do prazer, se é que chegamos a sentir algum!» [...] É disso, precisamente, que provém a moléstia mais grave de todas quantas o Papalagui sofre. É agradável ir buscar água à ribeira uma ou várias vezes ao dia; mas quem tiver que ir buscá-la todos os dias e a todas as horas, desde o nascer ao por do sol, até as forças o abandonarem, quem vai e torna a ir, sem descanso, à ribeira, acaba por atirar, de raiva, o cântaro para bem longe, afim de libertar o corpo de tais cadeias. De fato, nada há de mais penoso para o homem do que fazer sempre a mesma coisa. [...] Um ser humano saudável sente-se realmente feliz quando todas as partes do seu corpo vivem em harmonia com seus sentidos, e não quando apenas uma parte de seu corpo vive, e todas as outras estão mortas. Isso perturba, desespera e faz uma pessoa adoecer."

"O amor, ou seja, o proceder como deve ser - tem que correr-nos no corpo como sangue e fazer parte de nós como as mãos e a cabeça. «Cristão», «Deus», «Amor» são palavras onde a sua língua tropeça, com grande estentor. Porém, o seu coração e o seu amor não se prosternam diante de Deus, mas tão somente diante de coisas, diante do metal redondo e do papel forte, diante dos seus voluptuosos pensamentos e diante da máquina; não é de luz que os seu coração está cheio, mas de uma grande avidez de tempo e de uma grande loucura pela profissão. Irá dez vezes ao lugar onde se simula a vida, antes de ir uma só, junto de Deus, que longe, muito longe dele se encontra."

Erich Scheurmann
(Vale a pena reler o livro todo)

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